Gostaria de falar sobre a amamentação de um ponto de vista literário, fazendo um pequeno e superficial recorte de duas fortes imagens que encontramos na literatura de língua inglesa. A titulo de isca, recorro à duas imagens emblemáticas da tragédia Macbeth (William Shakespeare, 1564-1616) e do romance As vinhas da ira (John Steinbeck, 1902-1968), ambas obras literárias canônicas das literaturas inglesa e norte-americana, respectivamente.
A primeira vem com, talvez, uma das mais poderosas e temerárias personagens femininas do cânone shakespeariano: Lady Macbeth, a esposa do protagonista que, ao incitá-lo a dar cabo ao assassinato do Rei Duncan para usurpar o trono, clama: “Unsex me here!” e confessa que não hesitaria em esmagar a cabeça de seu bebê enquanto o amamentava, fosse para dar a coroa ao marido: “I have given suck, and know/ How tender ‘tis to love the babe that milks me: / I would, while it was smiling in my face, / Have plucked my nipple from his boneless gums, / And dashed the brains out, had I so sworn as you/ Have done to this.” (I.vii.54-59) Eis, sem dúvida, uma cena fortíssima e Shakespeare demoniza a figura de Lady Macbeth usando uma das mais belas e sagradas condições da maternidade: a amamentação.
Fig 1. Ellen Terry as Lady Macbeth (John Sargent, 1889Cabe abrir um parênteses para lembrar que a amamentação na Inglaterra elisabetana era uma prática enfaticamente recomendada pela literatura médica e religiosa, bem como pelas receitas medicinais encontradas em registros escritos pelas mulheres. Desta maneira e, talvez aqui alguns possam se surpreender, existiam manuais que tratavam meticulosamente dos cuidados para uma adequada amamentação. Diria-se, mesmo, que o interesse e o conhecimento sobre os poderes do leite materno há mais de 400 anos não ficariam muito aquém das últimas edições de livros acerca do assunto para leigos. Reconhecia-se as propriedades medicinais do lei materno não somente para os bebês mas também para vários tipos de doenças.
Lady Macbeth, muito embora seja uma mulher bela, sedutora, forte e influente até em assuntos políticos (algo atípico para a mulher da época) é, no âmago de seu ser, uma pessoa sem escrúpulos e desconstrói o arquétipo da imagem mais sagrada do acervo pictórico da representação feminina: a figura de Maria. Em termos imagísticos, Maria é a construção sócio-cultural do que temos de mais materno e santo; da mulher pura, imaculada e nutridora. Lady Macbeth, por meio de sua transgressão, incorpora, então, a figura antitética de Maria e torna-se Eva, a tentadora – aquela que expulsou a humanidade do Paraíso e a condenou a um eterno mundo de pecados, imprimindo a culpa na mulher. Lady Macbeth, tal qual Eva, com efeito, não passou impune: enlouqueceu, perdeu a ambição, o marido que amava e se suicidou.
Fig.2 - Original Sin (1467/8) Hugo van der Goes (c. 1440-1482).John Steinbeck, a despeito de minha confessa familiaridade com Shakespeare, ganha, no momento, uma importância maior para o que gostaria de sublinhar. As vinhas da ira (1939) ilustra o período da Grande Depressão nos Estados Unidos, um período de opressão e sofrimento para centenas de milhares de trabalhadores. A situação de alguns estados acometidos pela seca, como Oklahoma, era de pura calamidade e muitos trabalhadores da lavoura decidem procurar emprego em estados férteis como a Califórnia, Washington e Oregon.
A familia dos Joads acredita no sonho da maioria e parte para a famigerada jornada da Route 66, aos poucos perdendo membros da família e ganhando muita desilusão. Como muitos, os Joads são explorados como escravos na Califórnia e passam por vários percalços.
O capítulo final do romance é potencializado com uma força religiosa imensa quando a filha dos Joads, Rose of Sharon, abandonada pelo marido e, tendo recém perdido seu bebê, lembra a Pietá. Rose of Sharon amamenta um homem debilitado pela fome e seu filho. Acompanhamos a transformacão de Rose of Sharon que passa de uma moça egoista, caprichosa e imatura para assumir um papel semelhante àquele da mãe de Cristo. Tal qual Maria, ela representa a essência da maternidade, nutrindo não somente proteção e conforto mas também o sagrado leite materno. Steinbeck fecha um dos mais famosos romances americanos que trata da infertilidade da terra e dos homens com a metáfora da mulher nutridora. Ele sublinha a idéia de que a generosidade e o sacrificio são as maiores virtudes da mulher. A mulher em As vinhas da ira é dotada de poderes religiosos e redentores.
Fig. 3 - Rest on the Flight into Egypt, 1510, pintor anônimo. Este recorrente motivo pictórico, "Maria Lactans", caiu em desuso após o século XVI e, hoje em dia, muitos religiosos consideram de "mau gosto"A cena da amamentação em As vinhas da ira auxilia a sustentar a idéia da nação; uma nação que a despeito de passar por uma depressão jamais vista, por uma seca sem precedentes, encontra nos seios de uma mulher, a seiva da Terra Prometida, “the land of milk and honey”.
A mulher, como Simone de Beauvoir (O segundo sexo) e Virginia Woolf (Um teto todo seu) advertem, em muitas narrativas da nação (basta lembrar de Pocahontas, A letra escarlate, Iracema), ajuda escritores masculinos a veicular a idéia da “pátria-mãe”.
Shakespeare e Steinbeck criam duas mulheres caricatas e se utilizam da metáfora da amamentação para fortalecer os dois tipos mais importantes na representacão mulher: o anjo e o monstro. Lady Macbeth é a mulher que amedronta, tamanha sua força e Rose of Sharon, a mulher que se resigna perante seu destino e, baixando a cabeça, nutre um desconhecido.
Escritores homens parecem ter dificuldades em dar conta de mulheres “reais”; em outras palavras, ora as mulheres são suas musas inspiradoras, seus anjos protetores, ora são aquelas que os assombram e que os levam a perdição. Tratei, aqui, da amamentação para ilustrar como uma imagem, na literatura ajuda a cristalizar padrões e estereótipos que acabamos por considerar “normais”. Ora, convenhamos, a mulher não é nem anjo, nem monstro.
Como diriam as teóricas francesas Hélène Cixous e Luce Irigaray, quem tem maior legitimidade para falar sobre a amamentação é a “escritura feminina” (l’ecriture feminine), escrita despretenciosamente, a partir da fluída experiência feminina. E, de preferência, (e aqui a metáfora não poderia funcionar mais adequadamente!) com “tinta branca” (white ink), o leite materno.
Então leiam outros posts que descrevem a poética da amamentação a partir de vários gêneros literários: as tragédias e comédias de nossos pequenos e grandes erros, os diários de nossas mais íntimas experiências, enfim, a mais pura poesia do que há de mais sagrado e indescritível na maternidade: a amamentação.